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O criador de maravilhas

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retrato

Retrato de Rapaz
Autor: Mário Cláudio
Editora: D. Quixote
N.º de páginas: 139
ISBN: 978-972-20-5438-6
Ano de publicação: 2014

Sobre Leonardo da Vinci (1452-1519) não falta informação nem documentos que expliquem o seu percurso, o impacto tremendo que teve no seu tempo, a génese das grandes obras e descobertas. A vida íntima do mestre, porém, continua a ser um mistério. Nos milhares de páginas que deixou escritas, muitas delas em forma de diário, não se encontra registo de quaisquer experiências amorosas. Sabe-se que nunca casou nem teve filhos, mas é impossível determinar se manteve sequer relações sexuais, seja com homens ou com mulheres. No seu mais recente romance, Mário Cláudio explora ficcionalmente este campo de incerteza quanto à esfera dos afectos de Leonardo, partindo dos escassos factos verificáveis, mas evitando habilmente as armadilhas da pura especulação.
O livro analisa de perto o relacionamento conhecido com dois discípulos, Gian Giacomo Caprotti e Francesco Melzi, incidindo o foco em grande parte sobre o primeiro, justamente o «Rapaz» a que o título alude. Logo na primeira cena, vemos esse rapazito de dez anos, acabado de chegar à oficina do mestre, caracóis angélicos ainda «húmidos da barrela», a varrer o chão com uma vassoura de giesta. Fascinado diante de tamanha beleza física, na qual se esconde um «coração rebelde», Leonardo esboça-lhe o retrato, consciente de ser aquele um corpo inclinado para os maus caminhos: «nunca mais tentarei espetar-te asas nas espáduas porque o que diz bem contigo, meu Mafarrico, é um bom par de corninhos». O nome que lhe dá, Salai, significa isso mesmo: «pequeno demónio». E o malandrim encarregar-se-á de lhe dar razão e muita água pela barba, que Leonardo usava longa e encanecida. Findo o primeiro contacto, descreveu-o assim: «Ladrão e mentiroso, obstinado e cheio de ganância.» E logo abaixo: «Bem-vindo sejas, meu Patife.» Durante as décadas que se seguem, a relação raras vezes será pacífica, mas na «estratégia de traições consentidas, e de confessados roubos, em que ambos se implantavam, moldava-se-lhes uma amizade inquebrantável, difícil como as que desde sempre duram, e para sempre, escritas pelo trânsito dos astros na abóbada celestial». É sobre esta «amizade inquebrantável» que Mário Cláudio discorre, com a delicadeza e o recato de quem espreita por trás de um reposteiro, receoso de interferir.
À medida que o tempo passa, assistimos igualmente ao formidável trânsito do mais «ilustre criador de maravilhas» – sejam elas uma gigantesca estátua equestre para os Sforza, o falhado fresco sobre a Batalha de Anghiari, os estudos para a Mona Lisa (em que Salai se substitui ao modelo feminino) ou a extraordinária aventura de voar, numa máquina engenhosa a que os dois logo deitam fogo, como que para anular a audácia («Dirão um dia que não conseguimos, mas cada voo a si mesmo se inventa»). Depois de Milão e de um regresso a Florença, Leonardo termina os seus dias em França, onde Francesco Melzi, o fidalgote que organiza os papéis do mestre e o ajuda nas autópsias clandestinas, tenta substituir-se a Salai, sem sucesso, porque é deste que o génio sentirá falta quando se apaga, entre devaneios oníricos que envolvem uma emanação das Três Graças e uma «coroa de víboras».
Aproximação feliz ao universo renascentista, Retrato de Rapaz mostra Mário Cláudio no pleno domínio de uma escrita barroca – frases longas, trabalhadíssimas, muito buriladas –, prosa exuberante e faustosa, mas que vai além do artifício, directa ao que há de luz e sombra (ou seja, ao que há de esplendor humano) na figura de um génio único e do discípulo que nunca o abandonou.

Avaliação: 8/10

[Texto publicado no suplemento Actual, do Expresso]


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